Existe uma Trindade em Gênesis 11 7?

Era a Trindade em Gênesis 11 7 falando para confundir a língua dos homens que estavam construindo a torre de Babel?

“E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro.” (Gênesis 11:6,7 ARA) A teologia cristã tem por costume ensinar que é a Trindade falando em Gênesis 11 7. Ou seja, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo descem à terra para confundir a linguagem dos homens para que eles não continuassem com a construção da Torre de Babel. Porém, o que os relatos históricos acerca deste texto tem a nos dizer? Existe mesmo uma Trindade em Gênesis 11 7?

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De onde surgiu a ideia de que era a Trindade falando em Gênesis 11 7?

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Para ser sincero, a intepretação de que era a Trindade falando em Gênesis 11 7 é incerta, pois não se tem uma comprovação exata para isso, a não ser por meio de conjectura.

O que se sabe com certeza é que a doutrina da Trindade não se desenvolveu no contexto original hebraico/judaico das Escrituras. O povo israelita/judeu, que recebeu as Escrituras (vide Rm 9:4), sempre soube, de acordo com o ensinamento de Deuteronômio 6:4, que Deus é ehad, ou seja, é um só! E este ensinamento foi reproduzido pelo próprio Messias (ungido) em Marcos 12:29,

A doutrina da Trindade desenvolveu-se e foi elaborada especificamente pelos pais da igreja, ou seja, os homens que viveram à partir do 2º século EC e que deram origem à igreja e ao cristianismo como hoje o conhecemos.

Por isso, do ponto de vista histórico, um dos primeiros a utilizar, no Ocidente cristão, o termo “Trindade”, para expressar a ideia de que a unidade divina existiria em três pessoas distintas, foi Tertuliano. No início do século III, em sua obra “Adversus Praxeas” (2,4; 8,7), ele utilizou o termo latino de trinitas. Mas antes disso, no Oriente cristão, há o registo do termo grego “Τριας” (trias) nos escritos de Teófilo de Antioquia (“Três Livros a Autólico“, 2, 15) redigidos por volta do ano 180. Fonte: Wikipedia.

Iluminura medieval com a representação clássica da Santíssima Trindade
Iluminura medieval com a representação clássica da “Santíssima Trindade”.

À partir daí, ou seja, cerca de 100 anos depois da era apostólica, é que se tem interpretado que Deus é uma Trindade e que é esta que fala em Gênesis 11 7, “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem”.

Então temos como base para defender tal ideia meramente a especulação humana e as interpretações subjetivas dos teólogos cristãos antigos acerca dos relatos bíblicos.

Logo, seria esse realmente um método confiável de se concluir um assunto?

As literaturas judaicas que explicam com quem Deus estava falando em Gênesis 11 7.

A literatura judaica tem várias outras obras com muitos relatos históricos que complementam o conhecimento das Escrituras Sagradas. O Livro dos Jubileus é um dos que responde se havia ou não uma Trindade em Gênesis 11 7.

Este livro, traduzido para o português por L. F. S. Prado em 2012, possui vários relatos históricos acerca da criação humana até os tempos dos patriarcas. Ele foi entregue por um mensageiro celestial (anjo) a Moisés (original “Moshé”) no Monte Sinai enquanto ele recebia a Torá da parte de Deus. O capítulo 1:29 descreve este mensageiro (anjo) como aquele que esteve na frente do acampamento de Israel no deserto, e ele é chamado na tradução para o português mencionada acima de “anjo da presença”.

Este mensageiro enviado por Deus relata para Moshé a história da construção da Torre de Babel à partir do capítulo 10, verso 18. E ele diz o seguinte neste relato:

E no trigésimo terceiro jubileu, no primeiro ano da segunda semana [1625 A.M.] Pelegue tomou para si uma esposa cujo nome era Lomna, a filha de Sinar. E ela deu a luz a um filho no quarto ano dessa semana [1628 A.M.], e ele o chamou pelo nome de Reú (Gn 11:18); porque ele disse: 
- "Eis que os filhos dos homens se tornaram maus pelo propósito maligno de construírem para si mesmos uma cidade e uma torre na terra de Shinar."
Porque eles partiram da terra de Ararat para leste, para Shinar; porque em seus dias eles construíram a cidade e a torre dizendo:
-  "Vamos, por meio dela subiremos até o céu."
E eles começaram a construir, e na quarta semana eles fizeram tijolos com fogo, e os tijolos serviam como pedras, e o barro com o qual eles cimentaram [os tijolos] unidos era asfalto que provém do mar, e das fontes das águas na terra de Shinar. E eles construíram. 
Por quarenta e três anos [1645-1688 A.M.] eles estavam construindo [a torre]; sua largura era 203 tijolos, e a altura (de um tijolo) era um terço; sua altura somava 5433 côvados e 2 palmos, e (a extensão de um muro era) treze estádios (e a do outro treze estádios).
E o Senhor Deus disse para nós: 
- "Eis que eles são um povo e começaram a agir, e agora não há nada irrealizável a eles. Vamos descer e confundir o idioma deles, de modo que não poderão entender um o que o outro diz, e serão dispersados em cidades e nações, e [esse] propósito não prosperará até o dia do julgamento."

Ora, o Livro dos Jubileus foi encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto por volta do ano 1947 da nossa era.

Ele foi preservado pela comunidade sacerdotal judaica chamada de Essênios, e o que se sabe deles é que eram fiéis preservadores das tradições que Deus deu na Torá, bem como dos textos bíblicos (as descobertas de Qumran falam por si só). Além disso, eles foram responsáveis pela educação de João (original “Yohanan“) o batista, e desfrutavam de maior pureza e santidade que a comunidade sacerdotal de Jerusalém, cuja maioria havia se corrompido em vários crimes e hipocrisias (cf. Mat. 23).

Por isso, apesar de ser uma literatura não conhecida pela maioria dos cristãos e seus teólogos, ou até mesmo não valorizada, não deixa de ser uma literatura histórica judaica, como o Talmud, por exemplo, e que, assim como o Livro de Enoque, e vários outros achados, tem muitos relatos confiáveis.

Um exemplo da confiabilidade dos relatos do Livro dos Jubileus é que o Cainã, filho de Arfaxade e neto de Shem, que aparece na genealogia do Senhor em Lucas 3:36, mas não na de Gênesis 10:22-24, aparece na genealogia do Livro dos Jubileus (capítulo 8, verso 1). Ou seja, Lucas certamente consultou o Livro dos Jubileus pare remontar a genealogia do Ungido.

Mas isso não é tudo!

O Livro de Jasher (ou “do Justo”), mencionado duas vezes na própria Bíblia Sagrada (Jos. 10:13; 2 Sam. 1:18), também explica com quem Deus falava ali em Gênesis 11:7.

Este livro menciona, no capítulo 9 verso 32, o seguinte a respeito da confusão de línguas na Torre de Babel:

E Deus disse aos seus 70 anjos que estavam diante dele, e para aqueles que o rodeavam, dizendo: vamos descer e confundir suas línguas, para que um homem não deva compreender a linguagem de seu vizinho, e eles fizeram isso para com eles.

Por isso tudo, não existia trindade alguma em Gênesis 11:7, sendo essa uma conclusão a que se chega somente por meio de conjecturas. Mas nós não estamos mais aqui para ensinar crenças pessoais, interpretações solapadas e subjetivas aos homens. Além disso, dizer que Deus é uma trindade vai completamente contrário ao ensinamento original das Escrituras em Deuteronômio 6:4, o texto áureo da Bíblia Hebraica original que o próprio Senhor confirmou em Marcos 12:29.

Marcos 12:29, citação de Deuteronômio 6:4, na Bíblia Peshitta da Editora BV Books
Marcos 12:29, citação de Deuteronômio 6:4, na Bíblia Peshitta da Editora BV Books.

Mas por que o livro do Gênesis não diz que Deus estava falando com seus anjos (mensageiros)?

Dado as circunstâncias, só podemos concluir que isso se dá devido outras literaturas já existirem e serem conhecidas pela comunidade israelita antiga. Logo, não havia necessidade de ficar repetindo no resumo do livro de Gênesis o que já era comumente conhecido. Mas como as nações ocidentais foram educadas e influenciadas majoritariamente pela Igreja Católica romana medieval, fundada pelos pais da Igreja, de onde vem a doutrina da Trindade, então essa crença foi transmitida também à fé comum das igrejas protestantes e evangélicas contemporâneas, pois estas surgiram daquela.

Finalmente, de acordo com tais relatos históricos, não há nenhuma trindade em Gênesis 11 7, mas Deus falava com seus anjos, isto é, seus mensageiros celestiais.

Autor: Gabriel Filgueiras

Um caco de barro que com trabalho duro está sendo moldado pelo Criador.

8 comentários em “Existe uma Trindade em Gênesis 11 7?”

  1. Outros pensadores unitarios dirão que YHVH falava com o logos, pois João 17:5 fala desse logos junto ao pai YHVH.

  2. Obrigado fortaleceu minha fé! Interessante que eu sempre tive o pé atrás com a Trindade desde quando eu era católico. Depois que abrir meus olhos quanto a isso e muito mais outros ensinamentos falsos não sigo a nenhuma religião porque vejo muitos ensinamentos falsos dentro delas. E a maior desses é a Trindade.

  3. falou-se em conjectura mas acabou caindo no erro de usar as fabulas judaicas, como se fosse possivel aferir nelas a qualidade de inspiração dos textos biblicos!

    1. O mais engraçado é que os cristãos tem por costume desprezar as literaturas do povo de Israel, o povo que recebeu as próprias Escrituras Sagradas (Rm 9:4), e dá todo ouvido a teólogos gentios que criaram interpretações que surgiram fora do ambiente onde as Escrituras se desenvolveram.

      1. Estou impressionado com tamanha perspicácia, parabéns! Eu já não cria na trindade por varios outros fatores Bíblicos, agora enriquecidos por tão notavel matéria!

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