Existe uma Trindade em Gênesis 1 26?

A teologia cristã costuma interpretar que era a trindade falando em Gênesis 1 26: “façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. Ou seja, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo (um só Deus?) estavam juntos ali no ato da criação. No entanto, a verdade é que a Bíblia não dá uma explicação clara e direta a respeito dessa fala misteriosa do Criador. Será mesmo que há uma Trindade em Gênesis 1 26 então?

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Como a Bíblia não dá detalhes, dizer que era a trindade falando em Gênesis 1 26 fica no campo especulativo, o que não é seguro. Por isso, essa construção doutrinária acaba sendo subjetiva.

Comentários cristãos a respeito da Trindade em Gênesis 1 26.

A Bíblia de Jerusalém, que é praticamente a Bíblia mãe dos ensinamentos cristãos, tanto católicos como evangélicos, também uma das mais conceituadas em pesquisa e historicidade do texto bíblico, confirma que o ensinamento trinitário dessa passagem provém dos pais da igreja. Um trecho do seu comentário de Gênesis 1 26 diz o seguinte:

Este plural era uma porta aberta para a interpretação dos padres da Igreja que viram já sugerido aqui o mistério da Trindade.

Bíblia de Jerusalém, Paulus Editora, pág. 34, comentário de Gênesis 1 26.

Ou seja, por ter sido uma interpretação que surgiu entre os pais (ou padres) da igreja, que foram líderes cristãos que viveram a partir do século II de nossa era, tal comentário fatalmente sugere que essa doutrina não desenvolveu-se no contexto bíblico original hebraico e judaico, que é bem anterior a essa interpretação patrística.

Além do mais, imparciais como às vezes são alguns comentaristas da Bíblia de Jerusalém em alguns trechos (e isso é uma coisa boa), outros detalhes a respeito deste versículo são ditos neste mesmo comentário, que dizem o seguinte:

O grego (seguido pela Vulg.) do Sl 8,6 [ou 5], retomado em Hb 2,7, compreendeu este texto como uma deliberação de Deus com sua corte celeste (cf. Is 6), com os anjos.

[colchetes nossos]

Ou seja, simplificando o comentário acima, significa que Deus estava falando com seus mensageiros celestiais (anjos) em Gênesis 1 26.

Mas dizer que Deus falava com seus mensageiros (anjos) ali não seria também uma forma especulativa de concluir este assunto? É o que vamos tentar explicar daqui em diante.

O que dizem os comentários judaicos, o povo que recebeu as Escrituras (cf. Rm 9:4; Dt 33:4), a respeito de Gênesis 1 26?

O Targum Jonathan traduziu e reproduziu o texto de Gênesis 1 26 da seguinte forma:

E o Senhor disse aos anjos que ministravam perante ele, que haviam sido criados no segundo dia da criação do mundo: 
- Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança; e dominem os peixes do mar, e as aves que estão na atmosfera do céu, e o gado, e toda a terra, e todos os répteis que rastejam sobre a terra.

(Texto extraído de Sefaria.org).

Os targuns são uma mistura de tradução e comentário dos textos bíblicos hebraicos para o aramaico (a língua falada por Jesus). Eles começaram a ser feitos posteriormente à época do cativeiro babilônico (séc. 5 AEC), quando o povo israelita não estava tão familiarizado com o hebraico e havia adotado o aramaico como seu idioma. Há muito que se falar acerca deles, porém este espaço agora não nos permite, pois prolongaria muito nosso estudo e nos desviaria do tema central.

Por fim, será que o Targum Jonathan estava certo em sua interpretação acerca de Gênesis 1 26?

A própria Bíblia, bem como outras literaturas judaicas que veremos mais adiante, pode nos trazer luz a este assunto, se Deus falava com seus anjos (mensageiros) em Gênesis 1 26 ou não.

Já vimos que a Bíblia de Jerusalém, em comentário, dá uma pista disso ao mencionar a criação dos homens como tendo uma natureza inferior a dos anjos, de acordo com o Salmo 8, onde lemos:

“Quando contemplo Teus céus, obra dos Teus próprios dedos, vejo a Lua e as estrelas que criaste, e me pergunto: o que é o ser humano para que dele Te lembres? E o filho do homem, para que o consideres? 
Entretanto, pouco menos que os anjos o fizeste e de glória e esplendor o coroaste. 
Tu o puseste como soberano sobre as obras de Tuas mãos; tudo puseste a seus pés: ovelhas e gado, todos eles, e também os animais do campo, os pássaros do céu, os peixes do oceano e tudo o que se move sobre os caminhos dos mares.”
(Salmo 8:3-8 Bíblia Hebraica Sefer)

Veja que o salmo relaciona os anjos e o homem diretamente ao momento da criação, de tal forma que os versículo 6-8 são quase uma citação da parte b de Gênesis 1 26, como lemos:

... e que domine sobre o peixe do mar, sobre a ave dos céus, sobre o animal e em toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta na terra!

Além do mais, outros trechos das Escrituras mostram como que Deus, geralmente, é acompanhado por seu exército celestial em suas atuações.

Na visão do profeta Isaías (capítulo 6), Deus aparece acompanhado de suas criaturas celestiais (cf. vs. 1-3). No versículo 8 deste mesmo capítulo então, vemos Deus falando no plural como em Gênesis 1 26, dizendo, como você deve saber: “a quem enviarei, quem há de ir por nós“. Logo, pelo contexto da visão, inferimos que, obviamente, “por nós” se referia às criaturas celestiais junto Dele.

O profeta Daniel também o vê com milhares do Seu exército (cf. 7:9-10).

Mas ainda antes dessas visões proféticas, a Bíblia registra no Salmo 68:17 (às vezes no v. 18) que, quando Deus vai ao monte Sinai para entregar sua Lei (Torá) a Moisés, Ele o faz acompanhado de milhares dos seus santos mensageiros. Confira o texto abaixo:

"As carruagens de Deus são miríades e miríades, milhares e milhares; o Senhor está entre eles como no Sinai na santidade."
(Tradução extraída de Sefaria.org)

E fazendo a partir daqui uma retrospectiva até os eventos dos primeiros séculos da humanidade, outros relatos judaicos esclarecem que Deus falava com seus mensageiros (anjos) quando usava o plural.

Nos eventos da construção da torre de Babel, quando Deus diz em Gênesis 11:7, “desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro”, mais um trecho em que deduzem ser a trindade falando, o livro dos Jubileus (capítulo 10), um dos achados dos Manuscritos do Mar Morto, esclarece o seguinte:

Por quarenta e três anos eles estavam construindo [a torre]; sua largura era 203 tijolos, e a altura (de um tijolo) era um terço; sua altura somava 5433 côvados e 2 palmos, e (a extensão de um muro era) treze estádios (e a do outro treze estádios). 
E o Senhor Deus disse para nós:  
- "Eis que eles são um povo e começaram a agir, e agora não há nada irrealizável a eles. Vamos descer e confundir o idioma deles, de modo que não poderão entender um o que o outro diz, e serão dispersados em cidades e nações, e [esse] propósito não prosperará até o dia do julgamento." 

De acordo com relato deste próprio livro, ele foi entregue a Moisés por um dos mensageiros celestiais de Deus. Ele esclarece muitos eventos do livro de Gênesis.

Com ele concorda o livro dos justos (ou Jasher), mencionado na Bíblia duas vezes (Jos. 10:13 e 2º Sam. 1:18). Este, por sua vez, menciona 70 mensageiros celestiais trabalhando com Deus neste mesmo evento da torre de Babel. Seu relato diz:

E Deus disse aos seus 70 anjos que estavam diante dele, e para aqueles que o rodeavam, dizendo: 
- Vamos descer e confundir suas línguas, para que um homem não deva compreender a linguagem de seu vizinho, 
e eles fizeram isso para com eles.

Portanto, de acordo com todos estes relatos, mas principalmente considerando a assimilação que o salmista faz do homem e dos anjos no momento da criação (8:3-8), só podemos concluir o seguinte: Não existe trindade em Gênesis 1 26!

Além disso, será que o Mestre ensina que a trindade é quem cria o homem? Vamos estudar isso brevemente no próximo tópico.

Jesus afirma ter criado o homem junto com Deus?

Poderíamos parar o assunto por aqui, no entanto podemos estender só um pouco mais para dar uma conclusão a esta questão. Pois o próprio Senhor Jesus parece não concordar com este ensino de que é a trindade criando o homem em Gênesis 1 26.

No texto de Mateus 19:4 ele deixa claro que o Criador é uma pessoa só, o Pai, pois ali ele diz:

Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez...

Observe que o Mestre não diz, “eu e o Pai os fizemos no princípio”, nem “eu, o Pai e o Espírito Santo os fizemos”, ou “as três pessoas da trindade os fizeram”; mas ele disse apenas, “aquele que os fez”. Assim ele claramente concorda que o Deus Criador é uma pessoa só, que é seu Pai e seu Deus, nosso Pai e nosso Deus também (cf. João 20:17; Apo. 3:2,12; Rm 15:6; 2 Cor. 11:31; Ef 1:3,17; 1 Pe 1:3). Além do mais, conforme significado original, a palavra “espírito” significa “sopro” ou “respiração” e não “pessoa”. Portanto, o espírito é o “sopro” de Deus, isto é, metaforicamente, o seu vento, o seu mover, a sua atuação e inspiração no homem.

Concluindo, Deus faz um convite à sua corte celestial para participar da criação do homem, mas por fim é unicamente Ele quem o cria, de acordo com o v. 27, que diz: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Isso também se repete em 3:23,22 e 11:7,8).

É claro que existem muitos outros comentários a respeito de Gênesis 1 26 com explicações diferentes. O site Sefaria.org é dedicado em reunir material judaico relacionado às Escrituras Sagradas e podemos explorá-lo para obter mais conhecimento. Também existem muitos outros comentários cristãos acerca do assunto. Esta abordagem que eu trouxe aqui, porém, foi básica e sucinta para dar uma resposta rápida e conclusiva ao assunto.